Só um catequista “sintonizado” pode contrariar “debandada” da Igreja

A irmã Isabel Martins é uma das responsáveis pela Catequese no Patriarcado de Lisboa e fala,em entrevista à renascença, dos desafios colocados pela Carta Pastoral sobre a Catequese, que os bispos portugueses publicaram em Maio.

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A irmã Isabel Martins é uma das responsáveis pela Catequese no Patriarcado de Lisboa e esteva na Renascença para falar dos conselhos e desafios lançados pela Carta Pastoral dos bispos para este sector.

Conscientes de que a vida das pessoas é hoje muito diferente do que era há 20 ou 30 anos e de que as crianças e jovens de hoje têm outras necessidades e exigências a que é preciso responder, os bispos portugueses publicaram, no final de Maio, uma Carta Pastoral sobre a Catequese. O documento lembra que é preciso começar a falar da fé aos mais pequenos ainda antes da idade escolar, e sublinha as virtudes da “Catequese Familiar”, um modelo com o qual tanto aprendem os filhos como os pais.

Isabel Martins, das Servas de Nossa Senhora de Fátima, fala dos desafios lançados por esta Carta Pastoral, nomeadamente ao nível da formação e faz balanço positivo de projectos como a “Catequese Familiar” e o “Despertar da Fé” (no pré-escolar), que têm vindo a ser progressivamente aplicados em várias paróquias da diocese.

A responsável lembra que o catequista “não é um freelancer”, tem de se sintonizar com a linguagem dos jovens e saber que a iniciação da fé “não é a mesma coisa que ensinar a ler”.

Os bispos portugueses publicaram, recentemente, a Carta Pastoral “Catequese: a Alegria do encontro com Jesus Cristo”. É um documento com muitos desafios?

É, é um documento com muitos desafios para a catequese em Portugal. Ele integra todo o pensamento do Papa Francisco na linha da evangelização, com uma linguagem muito fresca, muito desafiante, uma linguagem que, não negando a realidade, que não é totalmente cor de rosa, é uma linguagem cheia de esperança e que aponta para o futuro.

A Carta parte desta constatação – que em Portugal já era consciente, mas de que o Papa falou durante a visita ad limina dos bispos em 2015 – de que há muitos jovens que, passando pela catequese, não ficam na Igreja. O Papa até usou uma expressão muito forte: a “debandada” da juventude. Constatando isso mesmo, os bispos vão buscar à raiz do Cristianismo a importância que tem o encontro com Cristo para a descoberta da fé como um pilar para a vida e, logo, para permanecer na Igreja, porque quando se descobre a fé a gente não se vai embora, porque ela torna-se um tesouro na vida.

Os bispos lembram que é preciso envolver mais as famílias, com a Catequese Familiar, por exemplo, e também com o Despertar na Fé, ao nível do pré-escolar. Há que começar por aí?

Exactamente, por ajudar as crianças a cultivar a sua capacidade de abertura ao espiritual. Porque, assim como no jardim de infância se cultivam e se estimulam a dimensão cognitiva e motora, também a dimensão espiritual pode ser cultivada desde muito cedo. Não sendo um programa de catequese sistemático, como é depois a partir dos seis anos, há todo um programa para trabalhar a espiritualidade com a criança que a abre, desde logo, à descoberta e à relação com Deus, e há experiências muito, muito bonitas nesta área com crianças a partir dos três anos.

O Despertar na Fé já existe no Patriarcado há 12 anos. Qual é o balanço deste projecto?

É muito positivo. Nós fizemos, este ano, uma avaliação com as instituições, e elas dizem-nos que as propostas que nós, Patriarcado, fazemos têm tocado as famílias. Porque as crianças vão cantar para casa as canções, vão contar as histórias e isso toca todo o tipo de famílias, independentemente da sua opção religiosa, da sua crença ou não crença, que por vezes não existe ou está adormecida, e a criança vem ali acordar, e há famílias que despertam para essa dimensão.

É um despertar da fé das crianças e dos próprios pais…

Exactamente. E também dos próprios educadores, porque não é preciso ser católico para ser educador de infância numa instituição católica. As pessoas, como profissionais, quando se vêem com este projecto na mão, elas próprias acabam por desenvolver também esta apetência e curiosidade pelo espiritual, este desejo do espiritual. Mesmo quem chega a uma instituição como profissional, que até nem teve nenhuma iniciação, acaba por desenvolver esta sede, e a experiência acaba por ser globalmente bastante positiva.

Esta proposta da Catequese Familiar já existe nalgumas paróquias da diocese?

Sim, algumas paróquias já desenvolvem esta proposta. É um modelo que propõe às famílias que se comprometam activamente na catequese dos filhos. Uma semana encontram-se, na paróquia, os pais com um catequista e as crianças com outro catequista. Os pais recebem uma catequese e preparam a catequese que vão dar na semana seguinte, em casa, aos filhos. Na semana seguinte, estão em casa, na outra voltam à paróquia, e tem assim este ritmo – paróquia-casa, casa-paróquia – depois, também com momentos celebrativos na paróquia com um itinerário que segue o itinerário nacional dos catecismos.

Como têm reagido as famílias?

Há experiências diferenciadas. O êxito da Catequese Familiar está muito ligado à competência do catequista dos pais. A catequese familiar tem, assim, o desafio de acolher o adulto na caminhada de fé que está a fazer. E sabemos que a caminhada na fé não é uma caminhada linear, não é uma autoestrada – tem fases em que percebemos Deus na nossa vida com muita evidência e tem fases em que parece que perdemos Deus, e isto é tudo normal numa caminhada de fé. Um catequista de adultos – neste caso, quem acompanha os pais é um catequista de adultos -, precisa de encontrar o adulto na situação em que está para o ajudar a ser testemunha da sua fé para a criança. E portanto, a meu ver o grande desafio da catequese familiar reside aqui, no acompanhamento dos adultos.
Isto exige mais formação dos catequistas?

Exige, sim.

Como é que isso está a ser feito?

Existe um plano nacional de formação de catequistas, o curso de iniciação e o curso geral, que as dioceses implementam. Procuramos que em cada ano haja um curso de iniciação em cada vigararia, e aqui no Patriarcado de Lisboa são 17 vigararias. Temos uma proposta de encontro de introdução à catequese, para os catequistas que começam pela primeira vez, e depois o curso geral, que temos estruturado em quatro módulos de 18 horas cada um, dois módulos sobre os conteúdos da catequese, um módulo sobre catequética e outro sobre a pedagogia catequética. Depois temos ainda alguma formação complementar, iniciámos este ano uma formação para catequistas coordenadores, que vamos desenvolver no próximo ano, e vamos por aí. Mas, de facto, a formação traz muitos, muitos desafios.

A Carta Pastoral dos Bispos traz algumas novidades, por exemplo, em relação ao perfil que o catequista deve ter…

Sim. Há uns anos, era suficiente que o catequista fosse um bom mestre, que soubesse bem o que tradicionalmente chamamos a doutrina e o catequista podia ser equiparado a um professor, a um mestre, que passa conteúdos. Cada vez mais, o perfil do catequista vai sendo desenhado como aquele que testemunha, como aquele que acompanha um processo de iniciação, como alguém que é um mediador, um facilitador do encontro do catequizando com Deus. Logo, o catequista tem de ser alguém que está fundamentalmente ao serviço deste encontro. Os bispos dizem “mais do que um mestre que transmite saberes, ele deve considerar-se como um guia espiritual, que acompanha no caminho do Senhor, o que só é possível se ele próprio tiver experiência pessoal do encontro com Cristo, e conhecer o caminho a percorrer”. Isto é muito importante, e traz desafios muito grandes à formação de catequistas.

Se formos ver o directório geral de catequese, ele aponta três áreas na formação dos catequistas: o ser (tudo o que ele é como cristão, e o catequista é antes de mais um cristão amadurecido na fé), o saber (ele tem que conhecer a mensagem que transmite), e, depois, o saber fazer, todo o aspecto pedagógico. E a iniciação na fé não é a mesma coisa que ensinar a ler.

A ideia é que a catequese seja vista menos como escola. Como tem sido até aqui?

Menos como escola e mais como iniciação, que requer o envolvimento de toda a pessoa. É preciso que o catequizando, independentemente da idade que tenha, compreenda a fé, mas que se relacione com Deus, e por isso descubra a oração. Que celebre a fé, no sentido dos sacramentos, da eucaristia, da reconciliação, ou confissão, como habitualmente conhecemos. Que viva a fé, porque a fé tem consequências práticas – se eu me encontro com Deus, eu não fico a mesma pessoa, se eu experimento que Deus me respeita, eu tenho forçosamente que respeitar o outro, se eu experimento que Deus me perdoa, eu tenho o imperativo de perdoar o outro, portanto a fé tem sempre consequências na vida. E isto requer um saber fazer específico. E, depois, os bispos acrescentam aqui âmbitos da formação que eu acho muito importantes, como o ‘saber estar em’, por exemplo, saber estar em comunidade. A catequese é uma tarefa da comunidade cristã, antes de ser do catequista é da comunidade, da paróquia, e antes de mais o catequista tem de ser um membro da comunidade, bem enraízado. Um catequista não é um free lancer. E, depois, o ‘saber estar com’, o catequista tem de saber estar com os destinatários. Hoje, os que são catequistas de adolescência, por exemplo, têm de saber sintonizar com a linguagem dos adolescentes, com as realidades que eles vivem.

Muitas das crianças que fazem a primeira comunhão já não chegam ao crisma. É a fase crítica em que a Igreja tem, de facto, de repensar a forma comunica?

Sim, tem que se pensar, de facto, em termos de iniciação. Um dos grandes desafios da catequese, a meu ver, é levar a mensagem do Evangelho àquilo que é a realidade concreta da vida das crianças, dos pré-adolescentes e dos adolescentes. Porque efectivamente o Evangelho tem uma palavra a dizer, mas é preciso saber fazer esta conexão.

A catequese vai do 1.º ao 10.º volume. Pode haver alterações a este nível, começando mais cedo, com o tal ‘Despertar da Fé’ no pré-escolar, e haver, depois, mais ligação, no final, com a Pastoral Juvenil? Isso está a ser pensado?

A nível nacional, está a ser pensado. Nós, enquanto secretariado diocesano, colaboramos na reflexão do secretariado nacional, e isso está a ser pensado, sim. Houve mesmo um inquérito que foi feito aos adolescentes relativamente aos catecismos, mas de momento a proposta que há é, de facto, a da Pastoral Juvenil. Muitas paróquias têm grupos de jovens, outras não têm, mas se não há propostas os jovens não podem ficar. Um dos grandes desafios das paróquias é esse.

Mas a realidade não é igual de paróquia para paróquias. No Patriarcado de Lisboa, há paróquias rurais, paróquias urbanas, umas com grupos de catequese muito grandes, outras quase sem crianças…

A realidade é muito diversa. Nós temos tem um centro urbano de Lisboa que está praticamente deserto, as paróquias do centro histórico têm muito poucas crianças na catequese, porque as pessoas deixaram de morar ali. E, depois, temos toda a zona envolvente de Lisboa, que tem paróquias com 700 e 800 crianças na catequese. E temos todo o mundo rural, que também é muito diferente entre si. Uma coisa é o mundo de Torres Vedras, outra coisa é o mundo de Alcobaça ou de Vila Franca de Xira…

Quantos catequistas e quantas crianças existem no Patriarcado?

Catequistas, na última estatística, eram cerca de sete mil. Crianças, creio que eram pelas 15 mil. Gostaríamos que fossem mais, mas são muitas já para dar resposta.

Esta Carta Pastoral vem ajudar a consolidar este trabalho que já está a ser feito?

Eu acho que vem. Se nos deixarmos questionar por esta linguagem, penso que nos pode desacomodar bastante. Penso que está muito, muito enraizada no dinamismo que o Papa Francisco quer dar à Igreja, de olhar a realidade como ela é, com as suas dificuldades e as suas potencialidades. Nós às vezes corremos o risco de nos fixarmos só nas dificuldades, e não há só dificuldades. Há coisas muito bonitas, há muita entrega por parte dos catequistas, porque são voluntários, têm a sua vida de família, a sua vida de trabalho e entregam o seu tempo, muitas vezes os seus meios pessoais, e dão muito.

Penso que estamos no tempo em que passaram as respostas feitas, e que a receita hoje é testar, é ensaiar, é muito aquilo que o Papa diz, que é preferível uma Igreja enlameada, porque se tentou e arriscou, do que uma Igreja acomodada. Penso que é isso que temos que tentar. E as realidades familiares há que as acolher, e há que as acolher como elas são…

É isso que o Papa Francisco também tem proposto…

Exactamente. Nós temos crianças a chegar à catequese, e ainda recentemente escutava isso, que são elas próprias que vêm. Têm 8 e 9 anos, e as famílias não querem sequer que elas venham, e elas vêm. E se a criança quer, e está tocada por Deus, ela não pode ficar privada da fé e dos sacramentos porque a família está noutro registo. Há que descortinar quais são os sinais que Deus nos dá, e arriscar. Arriscar.

A entrevista foi transmitida no espaço das 12h, na Renascença, que às segundas-feiras destaca os temas sociais e relacionados com a vida da Igreja.

 

05 Jun, 2017 – 14:22 • Ângela Roque
Rádio Renascença
Fonte: http://rr.sapo.pt/noticia/85477/so_um_catequista_sintonizado_pode_contrariar_debandada_da_igreja