«Diz agora o Senhor: “Convertei-vos a Mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações. Rasgai o vosso coração e não os vossos vestidos. Convertei-vos ao Senhor, vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso…”»
Confesso-vos, irmãos, que estas palavras que ouvimos há pouco ao profeta Joel me soaram desta vez com particular intensidade e urgência. Abalados como fomos pelo relatório sobre abusos sexuais de menores na Igreja, de 1950 em diante, não podemos deixar de viver esta Quaresma sem um sentimento misto de tristeza e, apesar de tudo, esperança.
Tristeza, por nós e sobretudo por quem sofreu o que nunca devia ter sofrido, e muito menos da parte de quem sofreu e onde sofreu. Tristeza, vergonha e arrependimento não podem faltar neste momento, mesmo quando mais institucional do que pessoalmente, para quem não cometeu tais crimes nem com eles compactuou. Nada disto relativiza o pedido de perdão, antes nos corresponsabiliza a todos para emendar o que tem de ser emendado e aliviar o que possa ser aliviado a quem sofreu na altura e ainda sofra depois.
Reiteramos o pedido de perdão a quem sofreu, com a nossa solidariedade total e o compromisso de tudo fazer para ajudar no presente e prevenir o futuro. Quando houver algo a ser julgado e sancionado, sê-lo-á certamente, segundo a lei civil, canónica e evangélica – sendo que esta última não nos deixa desistir da conversão de ninguém.
Aí estão, preparadas e disponíveis, as nossas comissões diocesanas de protecção de menores e adultos vulneráveis, bem como a respectiva coordenação nacional, compostas por pessoas habilitadas e experientes, provindas das áreas da psicologia e da psiquiatria, da magistratura e da polícia, entre outras. Também reforçaremos o que diz respeito à preparação e selecção dos agentes pastorais, clérigos ou leigos, para estarem devidamente habilitados para o trabalho com os mais novos. Não pode ser doutro modo e assim será certamente.
Como tivemos a iniciativa de constituir uma comissão independente, para apurar o que aconteceu, também temos agora a disposição firme de continuar atentos e activos neste campo, onde não podemos falhar de modo algum.
Sim, estamos bem cientes da fraqueza humana, que não nos garante futuros impecáveis, nesta como em outras áreas. Somos, aliás, a única assembleia que, sempre que se reúne, se declara publicamente pecadora «por pensamentos e palavras, actos e omissões». Mas mais cientes estamos ainda da misericórdia divina e do seu poder de reconstruir vidas e mudar corações. Por isso repetimos convictamente as palavras do profeta: «Convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso…»
Aliás é esta certeza, que também é esperança, que nos justifica e garante como Igreja de Cristo, qual barca vogando entre ondas alterosas, que nos poderiam afogar. Mas certos também de que a misericórdia divina pouco ou nada poderá fazer em corações que não se queiram converter a ela, sinceramente e de facto.
Temos uma Quaresma de conversão, temos uma Páscoa a cumprir. Mesmo a indignação que ouvimos da parte de outros pode provir da nossa contradição, por vezes grave, com o Evangelho que pregamos mas nem sempre seguimos. Sigamo-lo agora, mais decididamente ainda. Façamo-lo intimamente e com a garantia que Jesus nos deu há pouco: «E teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa».
Porque disso se trata, efectivamente. Poderíamos passar muito tempo, demasiado tempo, em exterioridades “religiosas”, distraídos na forma e reticentes no fundo. Mesmo nas devoções quaresmais, que os séculos preencheram com cerimónias expressivas e por vezes espectaculares, corremos o risco de acompanhar a paixão de Jesus e a soledade da sua Mãe mais atentos ao que se vê e enfeita do que ao que significa e converte.
Não pode ser assim, diante de um Deus que «vê o que está oculto» e nos pede a conversão do coração e da vida. Aproveitemos por isso este tempo quaresmal, tão rico de sugestões bíblicas, litúrgicas e para-litúrgicas, para nos refazermos com Deus para glória sua e serviço do próximo, em oração e caridade verdadeiras.
Que os mais frágeis nos sintam próximos de si, com aquela caridade autêntica que os faça viver e reviver também, mais seguros, mais alegres e em paz. Se o jejum nos abstém de nós, é para dar lugar aos outros. E o mesmo se diga da oração, que no Pai Nosso é sempre plural.
A última palavra desta homilia e mensagem quaresmal é dirigida aos meus caríssimos irmãos sacerdotes, sem esquecer os diáconos: tendes sofrido particularmente neste tempo, em que a inegável dedicação pastoral da generalidade é afectada por notícias da infidelidade de alguns, provada ou alegada que seja.
Sei que não vos falta a proximidade e o conforto de muitos membros do Povo de Deus, que reconhecem e agradecem a vossa entrega ao serviço de todos e de cada um, nos actos sacramentais, na transmissão doutrinal e nas obras de caridade, pessoais ou institucionais. Prosseguis a atitude de Cristo Pastor, quer nos seus tempos de oração pessoal, quer ensinando os discípulos a rezar, quer nas palavras que proferia e nos gestos “sacramentais” com que fazia das suas atitudes outros tantos sinais do Reino de Deus.
Assim nos redimiu na cruz, porque abriu com a sua morte e ressurreição um caminho de regresso a Deus Pai que ninguém conseguiria trilhar sozinho. Ofereceu-se por nós, para nos oferecermos com Ele. É isto que fazeis no dia-a-dia, com grande generosidade também, com a discrição própria das realidades verdadeiras e constantes. Essas mesmas que o olhar divino regista agora e recompensará por fim.
Vivamos intensamente o nosso sacerdócio e o nosso serviço, sem os quais o mundo não seria o que, apesar de tudo, vai sendo, em tantas situações de solidariedade social e comunhão espiritual. E tendo bem presente que o êxito da Jornada Mundial da Juventude, cada vez mais próxima e tão necessária aos mais novos, neste tempo pós-pandémico, resultará sobretudo da intensidade espiritual com que a vivamos desde já.
– Seja uma Quaresma para consolidar a esperança!
Sé de Lisboa, 22 de Fevereiro de 2023
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Informação: A renúncia quaresmal de 2022, destinada em parte à Diocese de Palai (Índia), para o seu hospital que atende especialmente a população mais pobre, e em parte à Cáritas Diocesana de Lisboa, para apoiar as necessidades do povo ucraniano, totalizou 140 000 €. A renúncia quaresmal deste ano destina-se à construção duma casa de acolhimento a adolescentes e jovens que descem da montanha para estudar em Laleia (diocese de Baucau – Timor Leste), gerida pelas Franciscanas Missionárias de Nossa Senhora, e à Comunidade Vida e Paz, para poder reforçar o seu apoio às pessoas em situação de sem-abrigo.