“Vou conduzir-vos ao deserto, para vos falar ao coração.” (Os 2,16)
1. A vida de comunhão com Cristo caminha ao ritmo de etapas vividas na mais profunda intimidade com Ele. Encontrar, na travessia espiritual, momentos de solidão, passar pelo desassossego do silêncio, sentir o impacto da aridez da existência, tanto pode arrastar para o drama do abatimento, como conduzir à beleza do arrebatamento. Contudo, conduz-nos sempre para a radicalidade do tudo ou nada ou, mais precisamente, para os extremos. Talvez seja por esta razão que, segundo a sabedoria bíblica, as mais significativas experiências de Deus e da sua presença, como as vividas por Abraão, Moisés, Job, Elias, não esquecendo Paulo e a Virgem Maria, e até pelo próprio Jesus de Nazaré… aconteceram em contextos-limite, fora do ramerrame quotidiano. A um foi pedido que saísse da sua terra e abandonasse tudo; outro foi conduzido a um monte fumegante; houve quem passasse pela atroz experiência do sofrimento, da morte cruel, da perseguição, e mesmo do aniquilamento de todo o seu projeto de vida[1].
Neste sentido, venho propor à Diocese de Lisboa que, neste tempo quaresmal, percorrendo o caminho da conversão, se deixe levar pelo turbilhão da radicalidade a nível da vida espiritual; se deixe arrastar pela medida alta da santidade, que é ir até aos limites do amor, da esperança e da fé. Movidos pelo sopro de Deus, desejemos afastar-nos não tanto do ritmo das coisas, mas da mentalidade do repetitivo, do rotineiro, em suma, da trivialidade, para sermos investidos e agraciados pela força do Espírito que nos coloca em Cristo e transforma radicalmente o nosso coração.
2. Reconheço no convite do Senhor reportado por Oseias — “vou conduzir-te ao deserto e falar-te ao coração” (Os 2, 16) — a razão para fazer da Quaresma um itinerário de deserto no encontro com Cristo. Como a brisa da tarde reconforta e fortalece das fadigas do caminho, assim também o estar com Ele permite saborear a doçura da sua presença e faz com que, em nós, irrompa toda a força da Vida que, pelo Espírito, nos fora comunicada. “E a Vida era a Luz dos homens. A Luz brilhou nas trevas” (Jo 1, 4-5) — diz São João — assinalando como é pela Vida de Deus em nós que nos tornamos “sal da terra e luz do mundo” (Mt 5, 13-14) para manifestar a glória de Deus e vencer as trevas do pecado, do mal e do egoísmo. Não são os nossos esforços ascéticos, nem as nossas obras, mas a preponderância da Vida enquanto Luz que vence os abismos da escuridão. Por isso, em Cristo encontra-se a permanência do Dom por Ele conferido, em Cristo temos acesso à intimidade do Pai.
O deserto oferece-nos o silêncio que nos abre à escuta do essencial, como a oração no Espírito[2] permite que apenas a Palavra de Deus comunique com o nosso coração e se sintonize com ele; eleva-nos à contemplação de Deus e ao contacto direto e imediato do Céu com a Terra. É aí que apreendemos o valor do outro, enquanto irmão, e da sua indispensável presença na nossa vida, pois só sobreviveremos se assumirmos a nossa condição de pessoas que vivem em comunidade.
3. A Quaresma é o tempo favorável de aproximação e preparação para a Páscoa, o verdadeiro âmago do mistério da fé. Por inerência, um tempo de deserto que, no entanto, é tempo que se faz espaço, torna-se também lugar, fonte configuradora de novas atitudes. Molda-nos, como o barro nas mãos do oleiro! Ninguém regressa do deserto indiferente; o antes transforma-se num presente com esperança renovada num futuro salvífico. É plasmado por meio da graça que lhe dá um novo sentido à luz da plenitude divina.
O nosso deserto será profícuo se for o lugar e o tempo do encontro com Cristo, o qual nos torna dóceis à vontade do Pai. Um provérbio berbere diz o seguinte: “No deserto luta-se com tudo, menos com o próprio deserto… para lhe sobreviver”. Neste tempo, colocamo-nos nas mãos de Deus, sem resistência, rendidos ao seu amor e à graça da Vida que quer irromper em nós porque, de facto, foi-nos dada e transborda tanto para o plano das nossas ações como dos nossos discursos. Não se contraria a movimentação das dunas, como não queremos oferecer resistência à força da Vida nova que quer jorrar nas obras de paz, de proximidade aos pobres e sofredores, nas ações de caridade e partilha. Os outros, os irmãos, são essenciais para a realização da vida divina, que é vida de comunhão, na qual se mostra a glória de Deus, o brilho luminoso da nossa condição redimida pela morte e ressurreição de Cristo, a realização em nós da declaração do evangelista João “e… contemplámos a Sua glória, a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14).
Evocamos aqui o caminho de partilha e solidariedade que a Renúncia Quaresmal do Patriarcado de Lisboa percorreu no ano de 2023: totalizou €161.420,08 destinados à construção de uma Casa de Acolhimento para as adolescentes e jovens que vêm da montanha para estudar, em Laleia, Diocese de Baucau, em Timor-Leste. Foi um pedido das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora.
Propomos que, neste ano de 2024, o fruto da nossa Renúncia tenha um duplo fim: apoiar as obras na Casa Sacerdotal do Patriarcado de Lisboa para construir alojamentos para jovens; e apoiar obras na Escola-Orfanato das Irmãs de São José de Chambery, na Diocese de Pemba, na cidade de Mocímba da Praia e Cabo Delgado, em Moçambique, para acolher crianças e jovens vulneráveis, vítimas da guerra, e abrir furos para captação de água e, dessa forma, resolver o consumo de águas envenenadas.
4. Permanecer no Senhor é como que uma dádiva de solidão. A exemplo do deserto, pede-nos que deixemos muitas outras companhias: das coisas, dos afazeres, das preocupações, das agendas… até de pessoas, para delinear, nesse encontro, nesse tu a Tu, os traços de intimidade com Ele, gravados no nosso coração, no nosso ser.
Uma tríplice face caracteriza o rosto da nossa caminhada quaresmal: recordação, cordialidade e serviço.
a) Recordar[3], significa fazer voltar ao coração, regressar com o coração. A Quaresma faz-nos retornar aquilo que o Senhor fez por nós: a sua oferta de amor na Cruz constitui o compêndio da misericórdia para connosco. Quando contemplamos o seu rosto, recordando os seus gestos, fazemos memória viva da sua bondade, que é gratuita e incondicional. E comove-nos! Na força desta memória, que traz de volta ao coração a ação do Senhor, reencontramos também a multidão imensa por quem o Senhor deu a sua vida.
Cultivemos esta memória, que se fortalece quando estamos face a face com o Senhor, especialmente quando nos deixamos olhar e amar por Ele em adoração. Mas, também podemos cultivar entre nós a arte de recordar, valorizando os rostos que encontramos no dia a dia das nossas vidas.
b) A cordialidade exprime a ação que é realizada a partir do coração. O Papa Francisco tem apresentado um vasto programa da “cultura do coração”[4]. A Sagrada Escritura refere-se ao coração como sendo o terreno preferido do Senhor: aí, Ele pode lançar a semente da sua Palavra para que frutifique em sentimentos, projetos e ações de santidade (cf. Mt 13, 1-23); e, em nossos corações, “Deus derrama o seu amor, pelo Espírito que nos foi dado” (Rm 5, 5).
Eis o decálogo da cordialidade:
1. Ser compassivo e não julgar ninguém.
2. Indignar-se com os sofrimentos das vítimas da guerra e da injustiça e comprometer-se com a transformação social.
3. Amar e respeitar o outro integralmente.
4. Exercitar a paciência como caminho de amabilidade.
5. Ser responsável e comprometido com a verdade.
6. Cultivar a mansidão, a humanidade e a abertura ao diálogo com todos.
7. Colocar o amor como único e inegociável critério da ação pastoral.
8. Nutrir intimidade com Deus e viver segundo o Seu estilo.
9. Garantir o protagonismo do Espírito.
10. Promover a paz.
c) Servir. A Mensagem Quaresmal do Santo Padre para este ano tem por tema “Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade”[5]. Servir ao Senhor e aos outros tem a sua raiz no coração convertido pela graça do Espírito. Estamos convocados para fazer da libertação de todas as escravidões um verdadeiro projeto de vida, amadurecido na Quaresma e concretizado em plenitude na vitória pascal de Cristo sobre a morte. Equivale a referir que todo o desígnio libertador contempla o amor pela verdade, porque “só a verdade vos tornará livres”; mas habilita-nos também à esperança, porque “na medida em que esta Quaresma for de conversão, a humanidade extraviada sentirá um estremeção de criatividade: o lampejar duma nova esperança”.
Deus vos abençoe! Deus abençoe o vosso caminho quaresmal!
Sempre em comunhão convosco e com Cristo Ressuscitado!
Lisboa, 07 de fevereiro de 2024, Festa das Cinco Chagas do Senhor
† RUI, Patriarca de Lisboa
[1] Cf. Gn 12, 1-9; Ex 19, 1-25; Job 1, 1.22; Mc 14-16; 1Rs 19-22; Lc 1, 26-37.
[2] No caminho de preparação para o Jubileu do 2025 «Peregrinos da Esperança», este ano é dedicado ao “Ano de Oração».
[3] Cf. Papa Francisco, Homilia no 60° Aniversário da Faculdade de medicina e cirurgia da Universidade Católica do Sagrado Coração, 05 de novembro de 2021
[4] Papa Francisco, Mensagem para o LVII Dia Mundial das Comunicações Sociais, 24 de janeiro de 2023
[5] Papa Francisco, Mensagem para a Quaresma 2024, 03 de dezembro de 2023